Belo Horizonte, criado no Espírito Santo e radicado no Rio de Janeiro, Bernardo pegou as referências das viagens e chega ao disco de estreia “Xote de Realidade” com a experiência de um veterano. O álbum vai muito além da batida nordestina do título e traz rock, MPB e psicodelia para uma verve poética agridoce.
Como cronista do caos, Bernardo combina memórias pessoais e coletivas em catarse para trazer o ouvinte de volta ao mundo real. Com participações especiais de André Prand em “Cidadão de Bem”, Mari Jasca em “Bem Aqui” e Iraty Boelsums em “Pedra e Mel”, o álbum foi produzido por Elisio Freitas e mixado e masterizado por Bruno Giorgi.
Bernardo estreou sua discografia com o EP “Violão Bandoleiro” em 2018, com participações de músicos como Marcos Suzano e Lui Coimbra. Desde então, percorreu o país com shows e criou um novo álbum patrocinado pelo governo do estado do Rio de Janeiro por meio do decreto público Retomada Cultural RJ 2 em categoria que comemora o bicentenário da independência do Brasil. Confira a entrevista!
O seu álbum de estreia “Xote de Realidade” tem uma abordagem poética e introspectiva, misturando ritmos brasileiros com rock e psicodelia. Como você equilibrou essas diferentes influências e estilos musicais para criar um som coeso e autêntico?
Esse talvez tenha sido o maior desafio do disco. A ideia já era falar sobre a doçura e a dureza de viver no Brasil. Desde o princípio havia essa dificuldade de equilibrar o disco sobre dois extremos. Para traduzir isso em termos de arranjo, contei com ajuda preciosa do produtor musical, Elísio Freitas. Escolhemos os instrumentos que iriam representar cada um destes lados: introspectivo, festivo, da doçura, da dureza. Depois disso foi a etapa de erguer as músicas. Fizemos isso com alguma regularidade durante uns 4 meses e a liga do disco foi aparecendo ao longo do processo. Hoje escuto as dez músicas e gosto da linha que costura todas elas, apesar dos climas diferentes que o disco apresenta.
Seu álbum “Xote de Realidade” foi produzido por Elisio Freitas e mixado e masterizado por Bruno Giorgi, ambos com uma longa história na música brasileira. Como foi trabalhar com esses dois produtores e como eles influenciaram o som final do álbum?
Desde que cheguei ao Rio de Janeiro, em meados de 2009, acompanho o trabalho do Elísio Freitas como músico e produtor. Lembro que sua primeira apresentação ao vivo que assisti já me impressionou muito, tocando com o César Lacerda. Nunca imaginei que mais de dez anos depois estaria junto dele produzindo um disco com minhas canções. Foi super receptivo desde o começo, escutou com atenção minhas músicas gravadas no celular, em formato voz e violão, e topou fazer a produção musical do disco. Inicialmente o que eu tinha eram 10 ou 12 músicas, com um arranjo básico no violão, letra e melodia. Tudo o mais que se escuta no disco agora, em termos de arranjo, é criação do Elísio, a partir das referências que a gente discutia junto. Com o disco todo erguido, Elísio convidou Bruno Giorgi para fazer a mixagem e a masterização, com quem ele já fez vários trabalhos. Foi o toque final que o disco precisava para soar coeso e diverso ao mesmo tempo.
Você recebeu patrocínio do Governo do Estado do Rio de Janeiro através do edital Retomada Cultural RJ 2 para a produção do seu álbum “Xote de Realidade”. Como esse apoio financeiro ajudou você a realizar seu projeto e como você vê o papel do governo na promoção da cultura e das artes no Brasil?
O disco talvez nem saísse sem esse apoio, ou então seria completamente diferente, com menos instrumentos ou muito menor, em termos de faixas. O apoio foi fundamental para que a gente conseguisse fazer o trabalho que imaginamos no começo, um álbum com 10 faixas, com instrumentos que ajudassem a dizer sua mensagem principal: a gangorra que é ser brasileiro. Sem esse tipo de patrocínio fica muito difícil para artistas com uma projeção incipiente conseguir produzir algo, tirar um projeto do papel. É óbvio que existem muitos caminhos para a produção artística independente, mas o fomento da cultura por parte do Estado é fundamental para manter a a arte viva, seja ela de vanguarda ou não.
Nascido em Belo Horizonte, criado no Espírito Santo e radicado no Rio de Janeiro, você vem colecionando uma boa bagagem cultural ao longo de sua vida, é isso acabou se tornando visível em suas músicas. Como foi realizar essa repescagem de suas origens e principalmente como vê o contraste cultural de cada lugar em que passou?
Pergunta difícil! Acho que para responder bem tenho que fazer uma releitura da minha vida até aqui. Mas talvez seja possível responder isso comentando um pouco algumas músicas do disco. “Israel”, por exemplo, é sobre um amigo da adolescência, quando eu morava no Espírito Santo. Essa música me transporta muito para esse período, de se encontrar na rua, sair pelo bairro junto sem ter muito o que fazer, dos desafios e cenários daquela época. Foi também no Espírito Santo que tive meu primeiro contato com o forró. O bairro que a gente morava recebeu grandes atrações, como Falamansa, Trio Nordestino, entre outros. Tinha um movimento do forró grande lá. Minas para mim é a terra materna. Era onde eu passava minhas férias escolares, meu time de coração é de lá, o Cruzeiro. Inclusive, a música “Xote de Realidade” surgiu depois de uma tentativa fracassada de ver um jogo do Cruzeiro em Juiz de Fora: “Olha eu saí daqui só pra te ver…”. E o Rio de Janeiro é a cidade que escolhi para morar, na minha vida adulta. Aqui tive os maiores encantamentos com a música, com a cultura brasileira de forma geral. Senti-me mais próximo do buliço cultural do país, inclusive mais à vontade para colocar minhas próprias canções na rua.
Definindo-se como um cronista do caos, você acaba conseguindo transportar o ouvinte direto para versões trabalhadas de representações da sua vida unindo memórias coletivas e pessoais em uma verve poética e agridoce. Nesse caso, como costuma ser o seu processo criativo na hora de compor?
Geralmente eu começo com a melodia. Não consigo escrever uma letra solta e depois musicar, pelo menos por enquanto. Pra mim a base da canção é a melodia. O máximo que a letra pode fazer é ressaltar o que as notas já dizem. Acontece também da melodia já vir com algum pedaço de letra ou até com algumas sílabas soltas ou vogais insinuantes, que acabam me orientando na escolha das palavras. Depois desse começo, da melodia e fragmentos de letras, eu tento encontrar o tema da música. Isso é muito importante no meu processo: definir o tema da canção, sobre o que ela está falando, o mote. Pode até mudar depois, mas geralmente só consigo avançar na composição se descubro aquilo que aquelas palavras estão tentando alcançar. É o tema também que costura as notas, as palavras e, a médio prazo, até mesmo os arranjos possíveis. Esse lado cronista do caos que você mencionou na pergunta acho que vem de uma característica antiga minha, de ser muito observador. Talvez pela minha timidez, o que restava era observar atentamente o meu entorno. Agora, nas canções, estou perdendo a timidez e começando a contar aquilo que vi e vejo.
Para finalizarmos, eu gostaria de perguntar um pouco mais sobre como estão as suas expectativas para o sucesso desse lançamento e também o que espera que os ouvintes possam sentir com sua música?
Olha, por enquanto estou bem satisfeito com os retornos que tem me chegado. O disco ainda não foi muito além do meu próprio círculo, mas esse círculo já está crescendo e espero que cresça cada vez mais, para chegar nas pessoas que ainda não tiveram contato com minhas composições. E, quando chegar, espero que elas sintam a mesma coisa que eu sinto quando escuto uma música que me arrebata: de ter descoberto algo novo que estava esperando ouvir a muito tempo.